quarta-feira, março 30, 2005

Burrice pouca é bobagem...

É a sensação do momento. Daqui eu posso ver os jornalistas se estapeando, po favor deixem eu ir dessa vez, você já foi na semana passada, jogando no palitinho, apostando, eu pensei numas perguntas ótimas. Posso ver o vencedor da semana, emocionado, carregando seu bloquinho de notas e sua máquina fotográfica, indo encontrar o entrevistado da semana e pensando: Puxa, hoje eu consigo piada pro mês inteiro.
Quase uma terapia! O sujeito colocando pra fora todo o sarcasmo acumulado em uma vida inteira numa redação sendo chamado de estúpido. Muito prazer. Pérolas incríveis.
Do mesmo lugar de onde saiu a maravilhosa entrevista do maravilhoso diretor Paulinho Vilhena, temos:


A paulista Sabrina Sato faz há um ano e meio o papel de burra no programa pânico, da RedeTV!. Na semana passada, ela comeu minhocas e baratas no ar. SAbrina contou à repórter Heloisa Joly como se sente nesse papel:

Veja- Comer barata e minhoca não é humilhante?
Sabrina- Não tenho pudor. É tudo pelo profissional. Aliás, nem foi nojento. Minhocas têm gosto de terra.

Veja- Há quarenta anos as feministas combatem a imagem da "burralda gostosona", como sua personagem.
S- Mas eu sou parecida com ela. É assim que sobrevivo num programa de homens. Não quero mostrar que sou inteligente.

V- Como você definiria a inteligência?
S- Inteligência é usar um talento nato em benefício próprio. Eu uso o meu.

V- Qual é o seu talento nato?
S- Minha segurança está na beleza, não no intelecto. Por isso botei silicone.

V- E quanto ao cérebro?
S- Nesta fase da vida, não preciso ser inteligente. Mais para a frente, quem sabe? Quando estiver caída, vou virar intelectual.

V- Intelectual?
S- É. Ainda não tenho um projeto, mas a vida é cíclica. Ora estamos por baixo, ora estamos por cima. Para estarmos por cima, já tivemos de estar por baixo. Nossa, estou filosofando!

V- Isso já lhe aconteceu antes?
S- Tenho papos-cabeça. Falo da evolução do homem e até de ciência.

V- Evolução, ciência?
S- Ih, já estou me enrolando.

Não me dei ao trabalho de comentar muito, perda de tempo.
Com tanta atriz talentosa no mundo, o Pânico me contrata isso aí.
A vida, pra quem faz teatro, não anda muito fácil, não.

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- Senhor José Serra, senhor José Serra! O senhor não pode acabar com a Lei de Fomento. A produção teatral da cidade depende disso. Tudo bem, não podemos negar que o dinheiro está sempre nas mãos dos mesmos grupos, mas nesse caso o senhor precisa pensar em uma política nova, que divida melhor a verba, e que dê oportunidades pra grupos que estão começando, grupos que tenham uma produção de qualidade e que não tenham o apoio da Petrobrás. De qualquer modo, essa verba deve ser entregue. Se o senhor tira essa verba dos grupos, eles terão que aumentar o preço dos ingressos, ou não terão condições de se manter. São esses os grupos que produzem arte verdadeiramente nesse país. As produções comerciais por aí nunca mostram nada de útil, os ingressos são caríssimos, as opções de espetáculos gratuitos na cidade são pouquíssimas. O senhor está tirando a oportunidade de dar cultura ao povo. Uma cidade como a nossa deve ter mais opções, mais acessíveis à população. Não se pode educar um povo culturamente só pela Rede Globo, senhor José Serra. Cada vez mais o povo deixa de frequentar exposições, peças e manifestações artísticas em geral, e isso só demonstra o quanto o nosso país ainda é pobre em investimentos e incentivo à cultura. E isso deve partir do governo, senhor. Cultura é qualidade de vida, e o governo deve elevar a qualidade de vida. Essa cidade te elegeu, senhor José Serra. O senhor não pode tirar deles nenhuma forma de lazer. Isso demonstra nosso estado quase irreversível de miséria, de desigualdade, de terceiro mundo. Que tipo de pólo multicultural São Paulo deseja ser, com esse tipo de atitude tomada pela Secretaria da Cultura? O povo precisa disso, senhor, principalmente a população de baixa renda, principalmente aqueles que não tem condições de pagar 40 reais por um ingresso. E não são poucos. E quantos aos atores, desempregados? E quanto às crianças que não aprendem nada sobre arte nas escolas da rede pública? Falta de cultura aumenta a violência! As crianças precisam ir ao teatro, os adolescentes precisam ir ao teatro, os adultos, a terceira idade, todas as classes, o que será desse povo sem cultura teatral? Senhor José Serra, a população, sem a lei de fomento, não tem mais como ir ao teatro!
- Se não tem teatro, que assistam cinema.
- Mas, senhor,eles estão fazendo manifestações e...
- Distribui esses genéricos de Aspirina aqui que eles ficam bonzinhos.

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E de repente, um dia, você acorda e pensa: Puxa, eu estou tão feliz!
Será que eu vou me acostumar com isso???

terça-feira, março 22, 2005

Na era pós-Orkut

... você já recebeu algum cartão virtual??? O que terá acontecido ao Emotioncard, ao Yahoo!cartões, Voxcards, O Carteiro, desde a invenção dos scraps? Aliás, e aqueles e-mails com questionários, do tipo "conheça seus amigos"? Aqueles que você responde seu prato preferido, sua cor favorita, qual a primeira coisa que você pensa ao acordar... isso ainda existe? Logo isso será tão antigo quanto as correntes por carta que eu recebia quando era pequena. É a modernidade...

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Tenho cara de palhaça?Eu acho que não, mas pelo jeito esta não é uma visão unânime a respeito do assunto...

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Juro que me emocionei com Pink e Jean no paredão. Eu digo que é a melhor novela que a Globo já exibiu. Viva o merchan!

sexta-feira, março 18, 2005

Os textos acumulados das últimas semanas


" E saudade é só mágoa por ter sido feito tanto estrago" RR

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E, finalmente...

M- Vai fazer o quê?
G- Pé e mão.

(...)
M- Já escolheu a cor?
G- Esse vermelho aqui.
M- Ai, que bonito, você já trouxe de casa, então?
G- É.
M- Vai ficar bom, você tem esses dedos e unhas compridos...

(...)
M2- E você,querida, continua fazendo?
P- Não, agora eu não faço mais, não muito. Eu arranjei namorado. Ele me dá dinheiro, então, nem preciso mais fazer.
M2- Ah, namorado assim é que é bom.

(...)
Toque de celular: Tô nem aí, tô nem aí... pode ficar com seu mundinho...
P- Alô?... sim, sou eu... tudo bem, querido? ... isso... moro em Vila Formosa...hoje, que horas? ... a partir das sete estou livre...pode ser... é o seguinte, eu não tenho local próprio, eu atendo em casa, ou então em hotel... tem um aqui perto, o Tunísia... não, é legal, fica tranquilo... OK, então, é o seguinte: uma hora é 100, duas horas é 150... ok, até lá, então... um beijo!

(...)
P- Vou trazer minhas fotos qualquer dia pra você ver.
M2- Traz sim, ficaram boas?
P- Ah, ficaram... engraçadas.
M2- Mas era pra ser engraçada?
P- Não. Não é que ficaram engraçadas, ficaram bonitas, mas é engraçado a gente se ver desse jeito, né?
M2- Ah, deve ser. Eu nunca me vi desse jeito.
P- Pois é. Mas estão boas. Só não mostra o meu rosto.
M2- Ah, não aparece o rosto?
P- Não, imagina. O rosto, não! Só o corpo.

(...)
C- Tô nem aí, tô nem aí... não vem falar dos seus problemas que eu ...
P- Alô? (...) em casa ou em hotel... aqui perto... uma hora é 100... isso, a partir de que horas? ...Ok, um beijo...

(...)
G (pensando)- Hummm... duas horas, 150... dois programas por noite... 300 por noite.. vezes cinco dias por semana... contando que tem dois dias de folga, se não ninguém agüenta... 1500 por semana... por mês... 6000 reais!!! Será que tem algum gasto extra ou será que esse valor é líquido?
(...)

M2- E então, já escolheu a cor?
P- Eu queria algo mais escuro hoje... não sei ainda...
M2- Tem esse vermelho. Ou então, esse chocolate aqui. Com cintilante fica super bonito.
P- Ah, vou querer o chocolate, então. Eu não uso esmalte vermelho. Não gosto. Acho muito vulgar, meu pai sempre disse que mulher de esmalte vermelho é vulgar.
M2- Ah, depende da mulher...
P- É, então, em mim nem fica tanto, eu tenho unha pequena... quem tem unha grande que fica feio.. mas passa o chocolate mesmo.
(...)
M- Nossa, gostei desse vermelho. Ficou bom, né?
G- É, ficou. Mas passa mais uma camada, faz favor.

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É isso, o négocio é a praticidade.
O primeiro ensaio é na segunda, o ensaio geral é na terça, a estréia é na quinta-feira. Pra que mais?
Que venha logo o cachê pra saciar minha sede de atriz capitalista burguesa ainda sustentada pelos pais...
Aliás, no último mês eu consegui dois empregos. Até que o Inferno Astral não está tão ruim assim... pelo menos no quesito relações profissionais.

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- Bom, você já ouviu falar em Roacutan?
- Sim, doutora.
- O Roacutan é indicado em dois casos. Quando a acne é muito grave, aquele tipo de acne que a gente nem discute ( que é isso, doutora, que termos são esses? ) e num caso como o seu, de acne leve, mas persistente.
- A-hã.
- Se eu te passar qualquer outra medicação,mesmo antibiótico, sua pele vai melhorar, mas assim que você deixar de usar, tudo vai voltar. Ainda mais em período pré-menstrual, ou se você tiver algum outro problema hormonal.
- Sim.
- Mas o Roacutan é definito, porque vai atrofiar suas glêndulas sebáceas. O problema é que o tratamento é um pouco caro. Quanto você está pesando?
- 55 kg. ( Sim, 55, viva a balança de banheiro! )
- Então, calculando pelo seu peso... você vai gastar 150 reais. O tratamento dura seis meses. Seu lábio vai ficar ressecado, mas eu te passo a medicação adequada.
- OK.
- Então, você vai precisar fazer exame de sangue antes de iniciar o tratamento ( Ih, pronto, lá vou eu desmaiar de novo... ). E tem outra coisa muito séria... você não pode engravidar de jeito nenhum. O remédio faz a criança nascer deformada.
- Tudo bem, doutora.
- Você toma pílula anticoncepcional?
- Não...
- Usa camisinha, então?
- Não se preocupe, doutora.
- Você tem vida sexual ativa?
- Relaxa, doutora... faz o pedido do exame, faz...
- Quando foi sua última relação?
- Ai, a gente precisa mesmo falar sobre isso?


segunda-feira, março 14, 2005

Esta é meu Outro Eu ou Parte II

Antes de publicar outro conto do Caio Fernando Abreu pra encher lingüiça e não ter que perder tempo escrevendo, gostaria de fazer cinco considerações sobre meus amigos:

nº 01 - Eles sabem o que pode me deixar mal
nº 02 - Eles são superprotetores
nº 03 - Eles fizeram treinamento ninja
nº 04 - Eles são discretos
nº 05 - Eu os amo mais que tudo.

E é só o que vou comentar sobre a noite de sexta. Agora, à picaretagem.

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3 X 4: Liége

Sou morena e magrinha, mas não como qualquer polinésia, como queria Cecília, e também nada tenho de Oriente: sou mais britânica na minha morenez, sou mais Brontë, qualquer das três. Meu pequeno coração foi gestado numa áspera charneca, gasto os invernos tentando descobrir infrutífera um caminho qualquer sobre a neve capaz de transformar todos os caminhos num único descaminho gelado e sem porto, tivesse nascido cem anos atrás me fanaria em brancas rendas e hemoptises escarlates, menos por doença que por delicadeza, insuportáveis que são para meus olhos os escapados penedos das tardes ou a luz clara do meio-dia, envolta em penumbras que amenizassem o duro contorno das coisas viventes, assim me fanaria, com a magra mão translúcida estendida para o aro metálico dos óculos pousados sobre a capa de couro de um romance antigo, cheio de paixões impossíveis. Frente ao espelho, é com recato que tranço meus longos cabelos, enquanto a ponta de meus frágeis dedos de unhas curtas, às vezes roídas, acariciam o roxo das olheiras, herança de solitárias insônias. Depois busco um lugar junto à janela, pouso o rosto sobre uma das mãos e com a outra vou traçando riscos tristes pelas vidraças sempre embaçadas, por vezes grafo nomes de lugares e gentes que nunca conhecerei, sóis fanados atrás de nuvens débeis, flores doentias, estrelas opacas, talos quebradiços, plátanos desfolhados, olhos profundos, rostos apoiados em mãos magras como as minhas, identifico enquanto meus dedos riscam e riscam e riscam sem parar o inefável. De mancebos e malícias pouco sei, meu precário aprendizado da carne limita-se àquela gosma gelada que um estudante certo dia depositou entre minhas coxas virginais, contra um muro descascado e cheio de brutais palavrões gravados a prego, numa sépia tarde outoniça. Até a chegada das regras seguintes, temi que houvesse plantado sua áspera semente dentro de mim, e de cada vez que cerrava as pálpebras tornava a sentir seu bafo de fera no cio contra meu colo pálido, as pedras do muro ferindo minhas espáduas, a vergonhosa corrida com as meias soquete desabando sobre os sapatos de verniz, os inúmeros banhos e todos os perfumes, todas as colônias, sabonetes, essências que passei pelo corpo para arrancar de minha pele aquele cheiro descarado de animal. Prefiro os cheiros fanados, as rosas quase murchas, e nos transes mais dolorosos sempre fui eu a banhar os cadáveres familiares, cortando-lhes os cabelos e as unhas com infinito carinho, de certa forma meus mortos todos foram também meus filhos quando os polia esmerada para que são Pedro não lhes pusesse defeito ao bateram às portas celestes, que nada teriam contra mim no Reino dos Céus até a minha partida que, rogo constantemente, há de ser breve. Mas até hoje persiste o cheiro, embora na chegada do fluxo tenha me embriagado feito demente naquele sangue que assegurava a permanência de minha pureza, deixei-me sangrar durante várias horas, empapando lençóis e roupas íntimas, até estar segura de que nem a mais ínfima gota de líquido vital daquele selvagem havia maculado minhas entranhas: eu as reivindico brancas como o linho das fronhas, como o cretone dos lençóis, como a renda destas cortinas que o vento sopra contra as violetas nessas tardes em que o sol demora a partir e o céu inteiro tinge-se de lilás. Não, não ofereço perigo algum: sou quieta como folha de outono esquecida entre as páginas de um livro, definida e clara como o jarro com a bacia de ágata no canto do quarto- se tomada com cuidado, verto água límpida sobre as mãos para que se possa refrescar o rosto, mas se tocada por dedos bruscos num segundo me estilhaço em cacos, me esfarelo em poeira dourada. Tenho pensado se não guardarei indisfarçáveis remendos das muitas quedas, dos muitos toques, embora sempre os tenha evitado aprendi que minhas delicadezas nem sempre são suficientes para despertar a suavidade alheia, e mesmo assim insisto- meus gestos e palavras são magrinhos como eu, e tão morenos que, esboçados à sombra, mal se destacam do escuro, quase imperceptível me movo, meus passos são inaudíveis feito pisasse sempre sobre tapetes, impressentida, mãos tão leves que uma carícia minha, se porventura a fizesse, seria mais branda que a brisa da tardezinha. Para beber, além do chá com une larme de lait, raramente admito um cálice de vinho, mas que seja branco para não me entorpecer, e que seja seco para não embrasear em excesso minha garganta em ardores que, temo, poderiam descontrolar-se além do limite imposto pela pudicícia, e para vestir,além do branco absoluto, admito apenas o cinza e o bege, raramente o preto, demasiado dramático para quem busca integrar-se ao fundo, não destacar-se, poucas vezes ouso o bordô, contudo me agrade o sangue coagulado de seus tons, lembrando dores para sempre pacificadas na sua estagnação, e nunca me atrevi aos azuis, iluminados demais para minha severidade. Nas folhas que datilografo como secretária, os chefes jamais detectaram uma rasura sequer, uma violação de margem, um toque mais nítido ou esmaecido, sou sempre precisa, caracteres negros sobre o branco impecável, e isso é tudo. Recebo modesta os elogios, vou duas vezes ao banheiro cada dia, ao chegar e ao partir, quando não tenho serviço cruzo os braços sobre o busto escasso e simplesmente permaneço, existo mais profundamente assim, quando silente, ou abro discreta certo livro de poemas líricos para saborear algum verso enquanto contemplo as alamedas estendidas atrás das janelas. Mas desde que, há duas semanas, uma cigana desvendou as fracas linhas das palmas de minha mão, pouco sossego encontro até em meu próprio sossego: dois amores, ela apontou, um já passado, e com amargura localizei na memória aquele sôfrego estudante, e outro em breve por chegar. Desde então, me desconheço. Abreviaram-se-me as idas ao banheiro para molhar os pulsos e os lóbulos das orelhas, animando a circulação que se me estanca nas veias, por vezes olvido a torneira aberta e surpreendo-me a odiar minhas próprias tranças, as manchas roxas sob os olhos e tudo que me torna assim, fugaz. Mal posso conter um susto investigando o porte de cada homem que se aproxima, em cada esquina que dobro, em cada ônibus que tomo para ir e vir, sinto que busco o prometido e me detesto por essa inquietação febril, pelo amor que desconheço e mal consigo supor, tão parca é minha vida de memórias ou medidas. Esforço-me por dar-lhe pinceladas tênues, não me atrevo aos óleos nem aos acrílicos, é nos guaches e sobretudo nas aquarelas que procuro o verde esmaecido de sua tez, mas por vezes alguma coisa se alvoroça e me surpreendo alucinada, incontrolável, a chafurdar em tintas fortes, berrantes, cores primárias, formas toscas, símbolos sensuais, e é então que mergulho em banhos gelados no meio da noite para apaziguar a carne incompreensível, fremente qual Teresa d´Ávila, afogada entre lençóis, as palavras da cigana me embalando feito uma berceuse, imagino se não será o próprio Senhor este que se aproxima, e não conheço. Em cada junho, sei que não suportarei o próximo agosto, me debato elaborando aquela futura tarde gris para encontrá-lo- não aqui, entre torpezas, mas numa outra dimensão de luz maior, além de meu próprio corpo, irmão-burro aprisionado pelos instintos, num espaço discreto e contido como eu mesma venho sendo através destas quase três décadas que, álgida, sobrepujei. Sobrevivo a cada manhã quando, cruzando as portas e corredores que me conduzem às ruas intermináveis, imagino sempre que sou invisível para cada um dos que passam. Ninguém suspeita de meu segredo, caminho pelas calçadas, olhos baixos para que minha sede não transpareça: ah sou tão morena e magrinha que ninguém me adivinha assim como tenho andado- castamente cinzelada no topo deste morro onde os ventos não cessam jamais de uivar, tendo entre as mãos, como quem segura lírios maduros dos campos, uma espera tão reluzente que já é certeza.

quarta-feira, março 09, 2005

Acredite, esta sou eu

Estou sem muita inspiração. A não ser para escrever aquilo que todos que convivem comigo já estão cansados de saber, afinal toda música, todo conto, toda frase e toda imagem me diz respeito ultimamente. E, enquanto não encontro tempo nem paciência pra contar de maneira decente a história das minhas unhas vermelhas (calma, um dia todos compreenderão), vou colocar um conto (obviamente dividido em duas partes, a fim de prolongar meu período de recesso) , do Caio Fernando Abreu, este escritor que escreve sobre mim com muito mais talento do que eu.

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Fotografias

18 X 24: Gladys

Sou uma loura trintona e gostosa, dezoito por vinte quatro, como se dizia antigamente, mas só repito essas expressões comigo mesma, aprendi que a gente entrega o tempo em lembranças assim, por isso sempre contenho o susto que me afoga o peito quando por acaso escuto Anísio Silva, Gregório Barrios, Lucho Gatica, porque além de trintona e gostosa sou também moderna e extrovertida. Daquelas louras que permanecem até o fim e o depois de qualquer coquetel, e há tantos coquetéis e tantos principalmente depois de coquetéis na minha vida, sempre repito ao espelho passando as bem tratadas mãos de longuíssimas unhas ciclamens pelas fartas curvas perigosas da opulenta carne que Deus me deu, e só ele sabe a quantas duras e caras penas mantenho firme e fresca. Sou uma loura coquete que adora coquetéis, onde costumo degustar dulcíssimos martínis com cerejas, jamais com azeitonas, detesto o amargo, minha boca de insuspeitadas próteses foi feitas apenas para saborear doçuras e todo dia, com as impecáveis unhas ciclamens, bato veloz nas teclas de minha IBM de secretaria eficientíssima, a coluna muito ereta, realçando o arrogante relevo do busto que, em idos tempos, já mereceu a disputada faixa de Miss suéter, acentuado ainda mais pelas malhas justas nem sempre decotadas, pois aos poucos a vida foi me ensinando que a luxúria reside menos na exibição integral do que naquela breve nesga de carne mal-e-mal vista entre a luva e a manga, e tenho meus sutis pudores: cruzo as pernas ardilosa, para que esse instante fugaz em que minha intimidade quase se revela por inteiro seja feita mais de ardentes expectativas do que de cruéis certezas. Não fui jamais uma loura óbvia demais, embora tenha estado sempre e por assim dizer à tona de mim mesma, em meu longo conhecimento dos homens descobri astuciosa que, no primeiro roçar de pupilas, é preciso prometer absolutamente tudo mas, no prosseguimento desses furtivos rituais, sei esmerar-me em caprichos lânguidos e débeis negativas,de forma que, quanto mais me esquivo, mais prometo, e mais abundante, se é que me entendem- cada não saído de meus cristalinos dentes equivale a dois, dez, duzentos sins, but not now; te daria já uma turmalina, mas te darei mais tarde uma urna de diamantes. Sou uma loura facílima, e por isso mesmo extremamente difícil, minhas obviedades possuem mapas complexos, os inúmeros x apontando o local exato do tesouro são quase todos falsos, eivados de selvas emaranhadas, lagos barrentos infestados de piranhas, crododilos famintos, pigmeus vorazes, caçadores de cabeça, tigres enfurecidos, ninhos de serpentes, pestes tropicais, febres malignas, curares e tisanas. Mas para o bom caçador, e aprendi também a importância de deixar o caçador supor-se caçador quando na verdade é o caçado, eu, pantera astuciosa de garras afiadas, andar felino, ferocidades invisíveis, mas como ia dizendo- sou também uma loura labiríntica em suas próprias tramas, tão densas que freqüentemente surpreendo-me atingindo o ponto oposto ao de minha rota anterior, um bom caçador-caçado sempre sabe como chegar direto ao próprio x que nem sempre é remoto, mas só os mais astutos percebem que o x, em vez de perdido entre incontáveis perigos, pode estar à beira do mais manso dos regatos, à sombra da mais florida cerejeira, no mais fresco desvão do mais fértil dos vales. Para estes, cedo, para estes, quase sem hesitar, escancaro minhas coxas de cetim e sou guia experiente em todos os passos que conduzem aos segredos de minha licorosa caverna, para estes acendo as luzes dos meus adentros, faço com que as sombras deixem de ser ameaçadoras para tornarem-se macias penumbras, veludosas alfombras distendidas com cuidados extremos para secar o suor e matar a sede dos bravos viajantes, extenuados pelo esforço de manterem eretas suas rijas armas de fogo nos roteiros por minhas intrincadas entranhas. É verdade que por vezes me perturbo tentando localizar entre esses o Grande Descobridor, qual América em sua nativa solidão virginal, impaciente pelo Colombo que a revele de vez para o mundo, explorando-a até o derradeiro veio de ouro para torná-la escrava cativa, serva humilhada dos mais brutais colonialismos, e para esse me preparo, para esse me burilo e me lapido esmerada- e sei que virá. Há duas semanas uma cigana localizou dois sinais, dois amores entre a minha linha do coração e o solitário sintético do anular esquerdo, um já vivido, afirmou, e logo lembrei daquele inábil escoteiro que em tempos imemoriais, inconfessáveis sob pena de revelar um coração já marcado pelas intempéries da existência, deixei que ensaiasse em minha exuberante geografia seus hesitantes primeiros passos, e após trinta e seis meses de proveitosa aprendizagem permiti que partisse, disseminando por outras paragens toda a sabedoria que, com trágica paciência e dilacerada alegria, concedi que extirpasse de mim, pois sempre soube ser eu, loura febril, nada mais que a primeira, jamais a derradeira, jamais a única entronizada em santa e mãe de filhos, a escolhida de seu esplêndido e insaciável ventre juvenil. Chafurdando em abissal melancolia na crise que se sucedeu, mergulhada em fugas barbitúricas, oceanos de gim, telefonemas noturnos em desespero, oceanos de gim, telefonemas noturnos em desespero, perambulações sedentas por todas as vielas pecaminosas do prazer, jurei solene aos pés de Oxum jamais voltar a ser como que progenitora de meus protegidos, preparando-os para a existência e, após, quedando em frenético abandono. Mas o segundo, a unha da cigana riscou forte a linha junto à base de meu dedo mínimo, o segundo chegará nos próximos meses e será sim ele, adivinhei, o Grande Descobridor, o tão sabido que nada terei de ensinar-lhe, e tão sabida eu mesma em todas as lições que já prestei que nada terei a aprender de si. Seremos, ele e eu, infatigável troca de prazeres, tilintar de cintilantes cristais em brindes com champanhe fervilhante de luxúria, línguas divididas na volúpia, corpos ensandecidos na selvageria dos gestos mais furiosos, e mais amenos, entre suores, gemidos e secreções de líquidos pujantes feito cachoeiras tropicais, sete quedas, sete orgasmos terei eu cada vez que me engolfe náufraga em sua ejaculação amazônica. Por ele espero, monja voraz, e desde que a cigana me desvairou assim investigo os volumes, os cheiros, os pêlos de todos os homens que ousam aproximar-se do covil desta pantera, receando então que uma excessiva ansiedade no fundo das castanhas luas gêmeas de meus olhos possam evidenciar uma sede demasiada para suas viris misoginias. Pelos inúmeros coquetéis por onde tenho desfilado meus ardis, observo em desprazer e apreensão meus desbragamentos cada vez mais freqüentes nos dulcíssimos martínis, e triturando a polpa das incontáveis cerejas temo explodir os limites de meus dezoito por vinte e quatro para transformar-me súbita em outdoor coloridíssimo, tão escandaloso e desesperadamente imenso que jamais caberia em quarto ou membro algum de qualquer homem. E quando despida e solitária em minha rendada furna investigo fatigada as novas marcas que o dia passado lavrou inclemente em meu rosto, tenho tido frêmitos próximos da dor, e quando me lanço sobre os lençóis acetinados do leito inutilmente perfumado, sinto que minhas ardências ameaçam arrebentar o negro négligé, e quando por malícia ou enfado cedo a algum caçador menor, suas estocadas já não despertam meu distraído prazer, perdido x inlocalizável até para mim mesma que o dispus no mapa, meu corpo enregelado agora abriga outro delírios, enquanto sob meus louros cabelos de raízes implacável e semanalmente descoloridas desfilam inconfessáveis fantasias com esse Grande Descobridor, cuja proximidade adivinho num eriçamento tal que nunca sei se será pressentimento ou puro engano. Por vezes raras, num misto de temor e júbilo, julgo escutar a ruído dos ramos secos sob a janela esmagados por suas negras botas reluzentes, enquanto se aproxima entre folhagens, e pelas madrugadas ardidas me engano supondo divisar nas sombras a massa escura e áspera da barba que lanhará meus seios intumesciods de desejo. É quando odeio a cigana por ter me enlouquecido assim, e custo a dormir, enredada em ódio, os dedos arquitetando delícias imaginárias nos lábios mais recônditos, mas na manhã seguinte não deixo de considerar o noturno coquetel de cada dia e então escovando cem vezes meus louros cabelos, sempre penso que pode ser Hoje. Escolho com cuidado os tules, as pedras, os organdis, os brilhos e brincos, e é tão luminosa e devastadora que enfrento o dia nascente que, apesar das sombras da madrugada, a cada nova manhã os que me vêem passar soberba e apocalíptica, pisando ereta no topo dos saltos, devem pensar qualquer coisa assim: lá vai uma loura trintona e gostosa, ao certeiro encontro de seu Grande Descobridor.

sexta-feira, março 04, 2005

Se alguém precisar de mim

Estarei lá, no fundo do poço, vendo filmes tristes, comendo chocolate e chorando pelo leite derramado.
Não tentem me enganar, eu sei que vocês também sabem onde é.