Pouco menos de um ano de sobrevida pra humanidade, chove nas ladeiras de paralelepípedos escorregadios de Ouro Preto e você dorme aqui do lado enquanto eu me rendo ao clichê de falar que a chuva de algum modo limpa o ano que passou pra começar um novo ano - como há trezentos anos alguma moça branca do alto do imenso casarão de seu marido ou uma moça negra trancada em um porão escuro também olhavam a última chuva do ano - claro, já chovia no ano novo, como ainda chove e choverá sempre - e pensavam que no ano seguinte tudo mudaria, mesmo que todos saibamos que as coisas não mudam, pra nenhuma da três.
Ouro Preto é uma maquete dentro da qual a gente anda, um grande álbum de fotografias em 3D, eu aqui, por entre as páginas, folheando as lembranças dos outros e amarelando junto, lamentando as Polaroids que o tempo conseguiu apagar. O passado então só existe se você ainda pode olhar pra ele, se está ao alcance da mão, ou aos poucos vai sendo esquecido?
A casa onde cresci foi vendida. Minha mãe me deu a notícia na véspera de Natal, num misto de sorriso e cara de choro - era ela quem não sabia o que sentir ou era eu? Em quarenta e cinco dias corridos, a casa deixa oficialmente de ser a nossa casa, ou a casa velha, ou a casa da Herculano, e eu não posso ir de vez em quando ter certeza que a felicidade que vivi ali de fato existiu. Meu álbum de fotos de uma vida inteira queimado em um incêndio, levado numa enchente, destruído num bombardeio inimigo - eu só precisava dele na minha gaveta, não olharia todo dia, mas ele estaria lá, por mim. Tenho medo de esquecer quem sou, por um motivo qualquer, me tornar alguém pior e não haver mais museu de mim mesma a ser revisitado. Eu não me importaria por pagar 6 reais de entrada para a manutenção do acervo - pago bem mais que isso pra minha analista semanalmente há mais de três anos pelo mesmo motivo - só para que o canto do jardim onde eu me agarrava com meu primeiro namorado não fosse esquecido, ou o local exato onde ficava a tabela de basquete onde eu praticava quando isso ainda era minimamente importante, ou o desenho das grades das janelas atrás da fresta da cortina por onde eu olhava para ver quem estava tocando a campainha quando ficava sozinha em casa. Eram redondas as pontas das grades? Ou tinham lanças? Tenho mais quarenta e cinco dias pra lembrar. Não serão o bastante?
Tenho amigos com quem não tenho nada em comum - a não ser o passado. Mas não ousamos assumir nossa separação pois há fotos no páteo do colégio ou na praia no verão de 87 ou daquela sua franja horrorosa aos quatorze anos ou sabe Deus o quê. Então, nos encontramos de tempos em tempos num acordo secreto de "você alimenta meu passado, eu alimento o seu, e seguimos nossas vidas separadas como se de fato soubéssemos do outro mais que o páteo do colégio, o verão de 87 e aquela franja horrorosa". Talvez seja o suficiente. Talvez ninguém queira pagar o preço de assumir que o passado já passou e pronto, não existe mais. Como a esposa infeliz que não ousa se separar porque não pode jogar fora anos de vida comum. Como quem não muda de emprego porque já perdeu tantos anos investindo nele. Como quem podia ser feliz hoje, mas prefere ficar se prendendo aos traumas antigos. Como eu, que já fiz e ainda faço tudo isso.
Tem esse lugar comum de que o último post do ano tem que ser retrospectiva misturada com promessa de ano novo e desejos de paz-saúde-prosperidade e beijo-pra-minha-mãe-pro-meu-pai-pra-você. E pra que fugir do lugar comum? Vamos lá: 2011 foi um ano de deixar um pouco do passado pra trás. Ou aprender a olhar pra ele como passado. Como peças de uma exposição. Pra pensar Meu-Deus-como-eu-conseguia-seguir-vivendo-nesse-lugar-com-essas-pessoas-como-eu-sobrevivi? Mas eu estou aqui, inteira ou quase inteira, escrevendo sobre o que está do lado de fora dessa janela enquanto você dorme aqui do lado e nem imagina que eu vou ser capaz de terminar esse post dizendo que nem eu nem você sabemos o que está por vir e é daí que vem a beleza da vida, e talvez isso também passe pela cabeça da moça branca trancada num porão escuro ou da moça negra solteira do alto da janela de seu casarão que daqui a trezentos anos continuarão a pensar que as coisas nunca vão mudar.